sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Funções simbólicas e comunicativas da Arte Gráfica Kusiwa


Para ilustrar a origem mítica das diferenças entre animais e humanos, o professor makarato representou a cobra grande, cujos dejetos coloridos deram a origem à variedade de pássaros. Makarato wajãpi, 2000

A tradição gráfica que os Wajãpi do Amapá denominam kusiwa aplica-se à decoração de corpos e objetos, envolvendo técnicas e habilidades diversificadas, como o desenho, o entalhe, o trançado, a tecelagem etc. Sua função principal, no entanto, vai muito além deste uso decorativo, pois o manejo do repertório de padrões gráficos é um prisma que reflete, de forma sintética e eficaz, a cosmologia deste grupo, suas crenças religiosas e práticas xamanísticas.
Trata-se de uma forma de expressão que evidencia, no seu uso cotidiano, o entrelaçamento entre a estética e outros domínios do pensamento. Sua eficácia está na capacidade de estabelecer comunicação com uma realidade de outra ordem, que somente se pode conhecer na mitologia e pelo elenco codificado de padrões. Narrativas orais e composições gráficas colocam em cena seres que não podem mais ser vistos pelos humanos de hoje, mas cuja existência pode ser acessada por meio dessas formas particulares de conhecimento e expressão.
Pela tradição oral dos Wajãpi, a origem das cores e dos padrões gráficos remonta aos tempos primevos, quando surgiram os ancestrais da humanidade atual. Antes disso, não existiam cores nem formas distintas entre os habitantes do mundo: todos eram iguais, sem diferenças marcadas em seus corpos, em suas línguas ou em seus conhecimentos e práticas de vida. A aparência era a mesma para todos, mas não os repertórios musicais, nem os conhecimentos. Foi durante uma grande festa que coube ao demiurgo Janejar promover a separação entre homens e animais, destinando a cada um seu espaço diferenciado e organizando, assim, a vida em sociedade. 

Os futuros homens e animais exibiam seus cantos e suas danças. Uma parte desses primeiros seres, que dançavam à beira do primeiro rio, caíram n’água e se transformaram em peixes. A partir de então, passaram a servir de alimento para os humanos. No fundo das águas, entretanto, peixes e cobras aquáticas continuam vivendo e festejando. Somente os xamãs podem acessar sem perigo esse domínio, percebendo esses seres como realmente são: “como a gente”.

De acordo com a tradição oral, no centro da pequena terra originária havia um grande lajedo de pedra onde vivia um ser poderoso e muito temido que foi morto pelos humanos. Ao morrer, entretanto, transformou-se numa imensa cobra, a anaconda – ou moju, na língua wajãpi. Os primeiros homens abriram o cadáver e extraíram seus excrementos, que eram todos coloridos. Organizaram uma festa e disseram para seus convidados se pintarem com as cores deixadas pela anaconda. Estes assim o fizeram e, enfeitados, dançaram e cantaram. Quando terminaram, uma parte dos convidados foi embora, voando. Eram os primeiros pássaros, com suas plumagens diferenciadas.
Ao se distanciarem dos humanos que ficaram na terra, pousaram numa imensa árvore sumaumeira, de onde se espalharam por todas as direções, levando consigo as águas que correm nos rios e igarapés da terra. Já os homens, que ficaram no centro da terra, aprenderam as danças dos peixes e os cantos dos pássaros, além dos nomes das cores, que designam as plumagens variadas das aves. Ao observarem a ossada e a pele da anaconda morta, viram as espinhas dos peixes que ela havia comido e assim descobriram os padrões com os quais continuam até hoje a decorar seus corpos e seus artefatos, em composições infinitas.


A separação entre os animais e os humanos está aqui representada pelo vôo dos pássaros, que partem  para todas as direções. eles se pintaram, cada um ao seu modo, com os excrementos coloridos de anaconda. a diversidade de pássaros e de suas plumagens simboliza a imensa diversidade dos seres que  habitam esse mundo, na concepção dos wajãpi do amapá. Arikima Wajãpi, 2000

Existem muitas narrativas, na tradição oral dos Wajãpi, que explicam como se repartiu o controle dos espaços que se constituem até hoje como habitat das espécies que povoam as águas, a floresta, as montanhas, os céus e as bordas da terra. Nessa distribuição, a humanidade tem um lugar específico, mas sempre instável, já que os homens não encontraram pronto seu domínio, tendo que forjá-lo, alterando o ambiente para criar roças, aldeias e caminhos.
Precisaram ainda do apoio dos animais que, de acordo com a tradição, lhes ensinaram diversas técnicas necessárias à vida na floresta, além de lhes transmitirem seus repertórios musicais e de padrões decorativos. Para os Wajãpi, os animais também têm alma e uma vida social semelhante à dos humanos, em contínuo desenvolvimento.
As árvores e a maioria das plantas, por sua vez, abrigam almas em corpos de gente, mas  desde a diferenciação das espécies promovida por Janejar no começo dos tempos,  apenas os xamãs têm acesso a essa realidade. Janejar, que dirigiu, no início dos tempos, o destino da humanidade, significa, literalmente, “nosso dono”. Tudo e todos, neste mundo, pela tradição wajãpi, têm seus respectivos donos: homens, plantas, animais e até mesmo os elementos que costumamos considerar “inanimados”, como as pedras.
A principal atribuição dos donos de todos esses seres consiste em tomar conta de suas criaturas, cuidando de seu crescimento, seu bem-estar e seu movimento. É justamente por existirem mestres específicos que todos podem se reproduzir, mantendo a indispensável diferença. A manutenção da diversidade é um pressuposto importante desta cosmologia. Cada porção do universo conhecido é definida como a moradia de um desses donos e das espécies que cria e controla, como se faz com xerimbabos.
Mas o criador da humanidade, Janejar, deixou de exercer este controle desde que foi embora para sua aldeia celeste. As relações que os humanos mantêm com os donos de animais e de plantas podem então se manifestar por meio de ações de cooperação, identificação e cura de males e infortúnios, mas podem igualmente resultar em agressão. Pois o dono da caça – ou dos peixes, ou das árvores – vai revidar quando alguém intervier exageradamente em seu domínio.
Anaconda, ou moju, é mestre das águas. em seu domínio subaquático, vive em companhia de suas  criaturas, cuja vida social é tão complexa quanto a dos humanos. Kasiripina Wajãpi, 2001

Para os Wajãpi, os humanos não são donos da diversidade existente na terra. Por esta razão, a ruptura no padrão comedido e respeitoso de relações entre esses múltiplos domínios e ambientes, representa uma ameaça para a atual humanidade. Ela será um dia substituída por outra, composta a partir das almas dos mortos, que vivem junto de Janejar, nas aldeias celestes, onde todos permanecem jovens e fartamente decorados com padrões kusiwa.


*Texto retirado do Dossiê Iphan2 -  Wajapi, p.12-15
Para ter acesso ao documento completo, clique aqui







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